ARTIGOS

A seguir alguns dos trabalhos apresentados no XVIII FÓRUM DE PSIQUIATRIA – “As redimensões do corpo" - realizado em novembro de 2011 no Anfiteatro Ney Palmeiro do HUPE/UERJ.



BREVE HISTÓRIA DOS NOVOS CORPOS E DE SEUS MONSTROS:
ENCONTROS INUSITADOS ENTRE FICAÇÃO E TECNOLOGIA




Ieda Tucherman (ECO/UFRJ)



O corpo é um pensamento mais surpreendente que a alma de antigamente.”
(Nietzsche – A Vontade de Potência)





Introdução:

Desde 1999 eu tenho me envolvido com este tema – corpo e tecnologias – e como toda pesquisa esta também tem uma história que não será contada aqui. Mas vale dizer que neste ano de 1999 eu publiquei um livro “Breve história do corpo e de seus monstros” e que este novo texto introduzindo o adjetivo novo antes de corpos e mencionando encontros entre ficção e tecnologia, dialoga e expressa um pouco sobre este percurso de mais de dez anos.

Neste tempo não foi apenas a pesquisa que avançou, ou novas fontes bibliográficas que foram encontradas; o que se deu foi uma incrível aceleração, um conjunto de novas experiências e o surgimento de novo projetos que eram impensáveis para o domínio da ciência e talvez só tivessem se apresentado até então no campo da ficção- científica. O transplante de rosto é um destes: do Face OFF de John Woo, 1996, para a francesa que fez o primeiro em 2005, ocasião em que o cirurgião que coordenou a operação afirmou que não entendia nosso espanto já que a identidade agora era baseada no DNA e não na antropometria. O que não impede imaginarmos como é viver sem se reconhecer no espelho e sem ser reconhecido pelos seres queridos que têm que reaprender a amar este novo rosto. Até então meu melhor exemplo era Aimee Mullins.

Apresentando as premissas:

Primeira premissa: Já tínhamos dito que o corpo é um conceito, uma pele cultural: o que nós temos de material são sangue, nervos, ossos e músculos (sendo grosseiros) Trata-se, portanto, de uma categoria, certamente a mais persistente na cultura ocidental, sobretudo porque suporta pela sua aparente evidência, as ideias de gênero, raça, identidade etc. Sendo um conceito e uma forma de presença no mundo, o corpo como conceito não é universal (há sociedades que têm outra relação com esta materialidade) e é histórico, ou seja, produz e sustenta formas diferentes de habitar o tempo e ocupar o espaço. O corpo grego do qual Tucídites diz que: O corpo nu é o auge a civilização não é o mesmo corpo que o judaico-cristão, que não é também o mesmo que identificamos na modernidade.

No entanto algo amalgamava este conjunto de presenças: o caráter ontológico do corpo, ou seja, o homem (no plural de humano) era um corpo. Hoje, ou a partir dos anos 60, um novo imaginário do corpo começou a ganhar espaço; podemos dizer, seguindo as pistas de Le Bréton (1), que deslizamos da ideia de ser um corpo (em tensão com a alma, o espírito, ou a mente) para a ideia de ter um corpo, novidade que alimentou os media de numerosas e inusitadas maneiras. Começava a se esboçar uma questão até então impensável e que se vinculava à aceitação ou recusa deste corpo para um sujeito a quem são oferecidas as possibilidades não apenas de modificá-lo na aparência, mas também nos elementos fundamentais da sua estrutura. O que vemos surgir é um corpo como mutação, produzido pelas regras de estetização geral da sociedade pós-industrial e por processos de singularização que falam ora da busca da perfeição através da disciplina absoluta e do controle (body building, cosméticas, dietéticas), da paixão pelo esforço ( maratonas, joggings) e pelo risco ( esportes radicais) ora das transformações e dos lugares das fabulações aberrantes tais como body modification , body art, etc: afinal o corpo também é um fazer valor. Sem deixar de ser o espetáculo.

Segunda premissa: O papel das biotecnologias na relação dos saberes contemporâneos. Podemos dizer que há uma história que concede e reconhece o privilégio de um campo científico sobre os outros que passam, de certa maneira, a transitar em torno deste. Assim, se a primeira parte do século XX teve a física como a ciência da promessa (e a bomba atômica fez parte desta) a segunda metade, sobretudo depois dos anos 60-80 vai ter as ciências da vida. Então, se a física foi a ciência absoluta na Segunda Guerra Mundial, como lembrou Oppenheimer na sua frase célebre: “ os físicos conheceram o pecado”, lembrando Hiroshima e Nagasáqui, se, como saber-poder, foi o centro dos interesses durante a Guerra Fria, hoje sua importância foi largamente superada pela da biologia no plano da inovação científica. É como se tivéssemos vivido uma mudança de configuração que podemos justificar a de partir de três fatores que aportam ao campo da biologia: o lugar de importância decisiva entre as ciências no que se refere tanto à necessidade quanto ao desejo de inovação científica.

Tais fatores têm natureza diversa o que os torna radicalmente complementares: o primeiro tem uma relação direta com áreas da economia e expressa a diferença produzida pelas biotecnologias, associação “virtuosa” da biologia com a indústria, fácil de verificar no imenso desenvolvimento da indústria dos fármacos desde os anos 60; o segundo tem a ver com a genética molecular e o extraordinário campo aberto para artificializar a vida, alterar seu curso, corrigir seus percursos, e, no limite, afastar a morte do horizonte onde sempre nos espreitou: o projeto genoma, o mais importante e ambicioso projeto que a associação mídia-ciência jamais divulgou; o terceiro, também nasce associado a um campo externo à própria biologia e foi o extraordinário desenvolvimento das técnicas de visualização do corpo, que tem seu início na descoberta do raios-X e prossegue passando por endoscopias, ultrassonografias, ressonâncias magnéticas e PET-scans, permitindo que absolutamente tudo seja visível e portanto conhecido no que toca ao humano.

Este conjunto de elementos tornou possível à biologia não apenas falar de quase qualquer coisa como de, legitimamente, discursar sobre o humano. O que teve graves consequências, das quais ainda não estamos suficientemente alertas: basta pensar que nos nossos tempos a biologia não atua mais no antigo campo clínico da terapia, mas trata da regulação da vida; temos uma sociedade cada vez mais medicalizada.

Então, tanto a saúde tornou-se um valor em si mesmo, um padrão para julgar e rejeitar comportamentos e condutas, a partir da avaliação dos riscos aí implicados, quanto se procedeu a uma “somatização da subjetividade” (2) que aparece em duas direções: a primeira é a das modificações na direção da sua estetização, longevidade e afastamento do envelhecimento, o que inclui o controle de normas que incluem alimentação controlada, codificação da relação com as bebidas alcoólicas e energéticas, check-ups permanentes, num apertado controle de si e de um virtual uso dos prazeres. A segunda consiste na patologização dos que parecem estar “fora do ritmo”, em geral vistos como deprimidos (tome Prozac) ou vítimas de DDTA, distúrbios de atenção e hiperatividade, comum no diagnóstico das crianças que passam a ser “normatizadas” à base de ritalina.

Terceira premissa: já aparece insinuada no que dissemos acima: é a influência e o encontro das imagens médicas com as imagens culturais.



Novas visibilidades: cinema e raios X

Comecemos com um pequeno recuo histórico: entre a última década do século XIX e a primeira parte da primeira década do século XX, podemos identificar um ponto de convergência histórico que, certamente, não foi produto de qualquer casualidade, onde se relacionam a cultura visual médica e o cinema; a década que vai de 1895 a 1905 viu oficialmente nascer o cinema e a descoberta dos Raios X (3). Trata-se de uma nova relação de visibilidade que, nos dois casos, altera irremediavelmente as concepções que então vigoravam sobre a vida, a realidade, o homem e seu corpo.

Como expressa David Le Bréton: “Pela primeira vez, a entrada no labirinto dos tecidos humanos não exige como condição necessária a morte do homem. Este último é posto em face do seu próprio esqueleto sem desfazer-se de sua pele.” (4)

Esta nova transparência vinculava-se a uma transformação na prática médica que, desde os séculos XVII-XVIII, buscava considerar o corpo como um objeto legível: a princípio a partir de uma variedade de técnicas que iam da dissecação à manutenção de registros regulares. Mais tarde, o “Nascimento da Clínica” (5), como consolidação da medicina moderna necessitava da transformação do corpo num conjunto de práticas discursivas, ou seja, configurava-se um jogo intersemiótico: para que o corpo fosse totalmente legível era necessário transformar imagens em palavras e palavras em imagens. Ver e fazer ver, dizer e fazer dizer. Descre-ver, o que equivaleu a inventar como objeto empírico de conhecimento.

As tensões entre palavra e imagem marcam o encontro entre a medicina e o cinema; encontro que é ampliado se pensarmos também na articulação com a cidade como o habitat e o contexto deste corpo moderno, tema das políticas de urbanismo, da literatura e, sobretudo do cinema. “O cinema, tal como se desenvolveu no fim do século XIX tornou-se a expressão e a combinação mais completa dos atributos da modernidade (...). A cultura moderna foi” cinematográfica “antes do cinema.” (6).


Medicina e Cinema: corpo e ficção-científica

Foram muito mais amplas as consequências do encontro entre a cultura visual médica e o cinema e envolveram questões interessantes também sintomáticas da leitura da vida moderna: vemos desde o uso pelos médicos do cinema em especialidades e aplicações (ambos vinculados a uma nova visibilidade) até discursos médicos reformistas que temiam ser a própria experiência do cinema prejudicial à saúde: lugares fechados e abafados, propícios à disseminação de doenças assim como “moralmente suspeito”, já que homens e mulheres, próximos e anônimos, no escuro, estariam fruindo as imagens em movimento e experimentando sua própria posição, não sujeita à vigilância (7).

O mais importante, no entanto, é a perspectiva de uma nova tecnologia da visão que altera radicalmente a tradição da cultura médica: chapas de Raios X, eletrocardiogramas, gráficos de temperatura, produzem uma transferência do foco, conduzindo do lugar da doença no corpo humano para a inscrição mediatizada dos processos corporais, o que retirava do paciente a autoridade da descrição do lugar de sua dor, para a interpretação especializada e autorizada do médico.

Assim, tanto o cinema quanto a nova cultura visual médica trabalham o corpo como espetáculo, aliando prazer, curiosidade, desejo de exploração e as invenções e ficcionalizações que vão povoar o universo da ficção-científica, o gênero chave na construção dos corpos-máquina (8).

Seria tentador explorar na história do cinema sua relação com os temas, tratamentos, personagens e questões que reconhecemos como pertencentes às narrativas de ficção-científica. Os exemplos seriam numerosos, o que podemos entender facilmente, se considerarmos que na ficção-científica temos, na própria enunciação, um oxímoro que associa a liberdade da ficção e o rigor da ciência e que o cinema é, ele mesmo, uma particular associação de arte e técnica. Feitos um para o outro, diria o século XX mesmo quando, ou talvez especialmente aí, considerava a ficção científica um gênero menor, já que questionava a intervenção da técnica mais do que os caminhos (e descaminhos) da consciência humana rumo à sua autonomia, ou quando discutia a especificidade do cinema, que não se posicionava enquanto arte porque não representava resistência à técnica (9).

Resumindo, sendo o cinema híbrido, seria o terreno adequado para a acolhida desta forma narrativa que fala de hibridações, misturas, outras experiências espaços-temporais, outras subjetividades, inteligências e mesmo anatomias.

Vamos, no entanto, pensar diretamente nesta relação no cinema contemporâneo, buscando identificar as obsessões comuns que nele encontramos, basicamente na sua redefinição do que é o humano e como se presentifica este universo de imbricação entre a técnica e o corpo.

Se pudermos falar da relação entre imagens médicas e imagens culturais, realizando-se de maneira espetacular no cinema, podemos usar um cineasta, David Cronenberg para nos ajudar a pensar duas relações: a já insinuada entre medicina e cinema e a que de que não falamos ainda: a dos monstros, sua história, seu significado e sua atualidade.

A direção do corpo. Sou ateu. Não creio em vida após a morte. Acredito apenas no corpo. O que acontece com o corpo é a realidade. Por isto há violência física nos meus filmes. O dramaturgo George Bernard Shaw dizia que o conflito é a essência do drama. Para quem vê o corpo como base para a percepção da realidade, a violência é uma forma de conflito essencial. A mesma lógica vale para o sexo e para o amor.” (Globo. 24/09/2009).

Digamos que Cronenberg, seguindo a idéia deleuziana de ser o cinema um objeto filosófico, é um pensador do corpo e é disto que deriva a sua teratologia. Sendo mais precisa, ele é um pensador do homem-máquina contemporâneo, a saber, do projeto biotecnológico de superação das limitações anatômicas do corpo humano, que as novas ciências da vida consideram obsoleto. “Como dizem dois pesquisadores e tecno-artistas falando do corpo na atualidade: “o corpo não é objeto de desejo, mas de design” (Georges Sterlac) e,” eu sou na medida das minhas conexões” (Roy Ascott).

Assim, o que a monstrologia de Cronenberg tem de mais interessante, ultrapassa em longas léguas e infinitos bytes esta primeira apreensão. O que aí encontramos é um ácido e radical diálogo com a nossa atualidade, associado a uma aguda percepção da genealogia que a tornou possível. A pergunta que nosso diretor não deixa calar é: até que ponto poderemos modificarmo-nos e continuar sendo humanos? Qual é o limite da nossa humanidade? Questão que talvez envolva a mais grave das decisões políticas que os novos procedimentos biotecnológicos (transplantes, clonagens etc.) tornaram iminente: Somos o último grau da seleção das espécies ou apenas um dos seus degraus, nem o último nem o mais perfeito? Para muitos autores, entre eles Peter Sloterdijk, esta é a pergunta mais radical dos nossos tempos. É onde se enuncia um biopoder que deverá decidir sobre mudanças que afetam as mais caras referências que temos de nós mesmos.

Neste sentido, a primeira e imediata consideração sobre a vinculação de Cronenberg com nosso tenso presente passa por duas constatações: o lugar do corpo e das ciências e tecnologias ligadas à vida, sua administração e transformação nos nossos dias, de um lado, e a influência das imagens médicas nas imagens culturais do outro. Resumindo: os monstros de David Cronenberg, ainda que presentes na sua ficção cinematográfica são monstros biotecnológicos.

Significa dizer que não são criaturas irreais nascidas nos nossos antigos mitos, embora tenham com estes um parentesco bastante importante: na mitologia os monstros eram figuras que misturavam elementos de diferentes naturezas, homens e animais (Minotauro), homens e deuses (Centauros) etc. Neste sentido eram transgressões às regras da natureza, assim como seriam, posteriormente, transgressões às regras das classificações, caindo no fosso comum dos anormais. Transgressão, aliás, explicada também nos mitos, como o desejo de criar o inexistente, de roubar dos deuses, da origem divina, a possibilidade de criação. O roubo do fogo realizado por Prometeu e cantado por Ésquilo mostra tanto o gesto do Titã de entregar o fogo transformador aos homens quanto o seu castigo.

Aqui cabe uma observação sobre monstros, no entanto, ligada, principalmente, sobre a sua função na nossa civilização ocidental: não é qualquer coisa que é um monstro, uma mosca, mesmo repelente, não o é. O monstro é monstro sendo o corpo do outro e o outro do corpo. Podemos, aliás, entender parte do nosso trajeto de produção do sentido de nós mesmos se olharmos o trajeto dos monstros e, principalmente, a explicação das causas do seu surgimento, que varia imensamente em diversos períodos culturais, desvelando “verdades”, valores, crenças e preconceitos.

Aristóteles: lusus naturae – brincadeiras da natureza produzindo folias na cultura.

Mundo cristão: associados às figuras do diabo, às transgressões. Santo Agostinho para explicar a existência dos monstros e das pessoas desfiguradas mantendo a teologia intacta, fala em outros lugares nas franjas da Europa como eventual morada dos monstros mitológicos e depois, falando de monstros como o corpo deformado de alguns homens, fala em presságio ligado ao nascimento como mistério divino, em punição para os pecados da mãe e – já que a Criação e o Dilúvio já fizeram dupla seleção da espécie, e menciona a mirabilia, os homens podem inventar e falar do que não existe. Esta tarefa tem sido empreendida por cientistas e artistas, como sabemos numa história de muitos encontros e desencontros.

Dando uma voltinha na história, Ambroise Paré em Traité des monstres et des prodiges, lista treze causas para os nascimentos de monstros ou “freaks”: A primeira é a glória de Deus. A segunda, sua indignação. A terceira, uma quantidade muito grande de sêmen. A quarta uma quantidade muito pequena. A quinta, a imaginação. A sexta, útero estreito ou pequeno. A sétima, a impropriedade da mulher que, enquanto grávida, permanece sentada por muito tempo com as pernas cruzadas ou pressionadas contra o estômago. A oitava, por quedas ou golpes contra o estômago da mãe durante a gravidez. A nona, por doença hereditária ou acidental. A décima, por deterioração ou decomposição do sêmen. A décima primeira por mistura ou mescla de sangue. A décima segunda, pelo ardil de mendigos errantes. A décima terceira, por demônios ou diabos. Esta aparente enciclopédia borgiana aponta para uma mistura de elementos teológicos e etiológicos, mostrando um momento de transição civilizacional.

Voltando à mirabilia de Santo Agostinho, pensaríamos então certamente no universo da ficção, que inventa mundos possíveis, e por aí, Cronenberg teria uma longa linhagem, nascida com os monstros da Ilíada. Mas isto , falar do que não existe, é também o universo da tecno-ciência que fala do real transformado e é o mote da ficção-científica, que anuncia o mundo que pode surgir a partir das múltiplas artificializações do real.

Os monstros de Cronenberg apontam para esta nova situação, realizando dela uma curiosa síntese. Se não, vejamos: vivemos hoje uma prodigiosa proliferação de monstros que nos surgem de todos os lugares: do cinema, das histórias em quadrinhos, das exposições de artes plásticas, dos brinquedos e video-games, etc. Talvez o mais interessante seja o fato de que, além de sua multiplicação numérica, eles nos sejam apresentados também nas revistas científicas, programas educativos, nos nossos mais conceituados laboratórios, científicos, como o rato a que implantaram uma orelha no torso, ou artísticos ou como a coelhinha verde da obra de Eduardo Kac.

Vivemos uma espécie de banalização da monstruosidade, ou, talvez em função desta nova associação com a ciência, basicamente através da manipulação genética, uma contração do domínio da anomalia. Então também as figuras de Goya pertencem a este passado: não porque se liguem à pesquisa científica, embora saibamos da relação direta que existe entre tecnologia e guerra; onde eles se assemelham é no fato de serem ambos, as figuras de Goya e os monstros biotecnológicos, fruto não de desvarios, mas de uma razão belicosa e arrogante. É isto que é terrível e, ao mesmo tempo, fascinante.

Cinema contemporâneo: corpo e novas tecnologias

Podemos reconhecer no mundo contemporâneo um tripé composto pelas biotecnologias (incluídas aí a genética e a engenharia genética), as ciências cognitivas, relacionadas diretamente ao campo da inteligência artificial e da robótica e as ciências da informação, que atuam na área dos computadores e das redes e atualizam nossas experiências de simulação, realidade virtual, ciberespaço, cibercultura, etc. São evidentemente relacionadas, vinculadas ao que alguns chamam de algoritmização da vida ou do cotidiano, mas, para o que nos interessa mais diretamente, são tecnociências, isto é, atuam sobre uma realidade que é, a partir delas, o devir técnico do mundo (10).

Neste quadro científico atual inscrevem-se campos de problematização da vida e do corpo que produzem novas lógicas metafóricas a partir das perspectivas geradas na biologia e na informática que se fazem ver com clareza no cinema: há um novo tipo de anatomia para o humano e uma nova anatomia cinematográfica que explora os diferentes níveis do artificial, por um lado, e explora as possibilidades do digital por outro, fazendo advir novos efeitos e novas estéticas (11).

Podemos destacar duas tendências, que quase nunca se apresentam tão “purificadas”, mas que desenham as novas relações corpo-ficção-tecnologia, sucedendo-se nas imagens que frequentamos (ou que nos visitam) no cinema e representam espécies de apostas teóricas que separam em correntes distintas os pensadores da atualidade.

Os herdeiros imediatos deste imaginário representam uma primeira posição nesta relação contemporânea corpo-novas tecnologias, tematizando as mutações até as suas formas mais radicais, através de figuras que são a própria simbiose com a máquina, criaturas híbridas com corpos variáveis, regenerativos, com trânsito livre entre os gêneros sexuais e os objetos. Criaturas pós-biológicas ou pós-humanas que aparecem, ao mesmo tempo, como nosso futuro e nossa extinção. Significa dizer que a própria vida tornou-se técnica, o que leva estudiosos como Freeman Tyson a acreditar que, em 50 anos, teremos quer uma fusão plena interespécies, quer a gênese de espécies completamente novas (12).

É interessante percebermos neste enunciado ainda outro sintoma: as declarações proferidas por cientistas destas áreas de ponta das biotecnologias e da informática são muito mais ousadas do que as fantasias apresentadas pela ficção-científica, literária ou cinematográfica. É como se a capacidade de fabulação que sempre caracterizou o mundo da arte e da ficção e que nos fazia conhecer universos e presente paralelo à nossa realidade tivesse sido usurpada pelos novos tecno-cientistas. Restou à ficção a função de expressar a inquietação humana diante das novas possibilidades, o que explica seu tom distópico ou a dose de grotesco e ironia que encontramos em cineastas como o canadense David Cronenberg, diretor, entre outros, de Scanners, sua mente pode destruir (1981), Gêmeos: mórbida semelhança (1988), Videodrome (1993), Crash (2004) e ExistenZ (1999).

O “abandono” do corpo

Se o corpo biológico parece obsoleto e se presta às imbricações com o mundo dos produtos biotecnológicos, há uma outra relação com o universo da técnica que também tem como objeto a superação do mesmo. O projeto aqui é menos corrigi-lo “na própria carne” através de próteses implantáveis e de produtos da nanotecnologia e mais de “libertá-lo” através dos processos de conexão mediatizados. Dizendo de outra maneira: para alguns entusiastas das novas tecnologias o corpo é um vestígio fadado a desaparecer de modo a permitir o acesso a uma humanidade gloriosa porque “consciência pura”, livre da carne que a enraíza no mundo, limita suas experiências e sua permanência.

Aqui, no universo do ciberespaço, fala-se na união do espírito com a máquina criando a nova forma de existência para o homem do futuro. Seria, para os entusiastas, o acesso à perfeição de onde se erradicariam a doença, a morte, a velhice e as imperfeições ao preço de separar, definitivamente, o espírito do corpo. Vejamos o que propõe Hans Moravec, cientista da área de robótica do Carneghie Mellon College considerando a obsolescência do corpo humano como um dado e pregando sua superação: “Somos infortunados híbridos, em parte biológicos, em parte culturais: muitos traços naturais não correspondem às invenções do nosso espírito. Nosso espírito e nossos genes talvez partilhem objetivos comuns ao longo da nossa vida. Mas o tempo e a energia dedicados à aquisição, ao desenvolvimento e à difusão das idéias contrastam com os esforços dedicados à manutenção de nossos corpos e à produção de uma nova geração.” (13).

As consequências são curiosas quando se adere com tal entusiasmo a esta perspectiva de telepresença e ciberespaço, que tem uma gênese curiosa apontando para uma duplicidade do mundo medieval cristão onde havia um espaço para os corpos, esta realidade material, presente e histórica, e um espaço para as almas, fora do tempo e do espaço geofísicos, regido pelo princípio da eternidade (14).

“Temo, infelizmente, que seremos a última geração a morrer”, é a “profecia” de G.J.Sussman, professor do Massachussets Instituto of Technology, (MIT), lamentando não ser ainda contemporâneo do processo em que transporemos nossos espíritos para um disquete e seremos transportados para uma máquina, sempre menos vulnerável do que o atual corpo humano. E, mesmo em caso de defeitos, a solução é simples: reinstala-se o disquete na próxima máquina (15).

Creio que a sexualidade orgânica, corpo a corpo, pele contra pele, não é mais possível, simplesmente porque nada pode ter a menor significação para nós fora dos valores e da paisagem tecnomidiática” (16).

É o universo da cibercultura onde o adjetivo virtual encontrou sua intensa prática, a ponto de considerá-la a nossa mais nova prótese da existência. E é este universo de anjos imaginários que percorre o imaginário ocidental desde o Paraíso de Dante até o universo Matrix.



Notas de conclusão:
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O que as narrativas de ficção-científica apresentam, e aqui o interesse são as de natureza cinematográfica, é a problematização das fronteiras entre subjetividade, tecnociência e outras possibilidades de experiências espaço-temporais. Tratam das questões surgidas no ambiente em que as tecnologias comunicacionais, biotecnológicas e informacionais são mais do que próteses, ferramentas ou extensão dos sentidos, realizando às vezes antecipações quase proféticas.

Internet, ciberespaço, realidade virtual são novos modos de interação homem-máquina. A máquina é o novo ambiente da experiência. Na integração que se põe em movimento entre seres biológicos e maquínicos, corpo e pensamento, matéria viva e inerte, carne e silício, nossas referências tradicionais ficam abaladas e questões novas surgiram: o fim-do-mundo e dos tempos, os paradoxos temporais, a comunicação com “inteligências” demonstrando formas de vida radicalmente diferentes, as desconstruções múltiplas das diferenças entre natural e artificial, humano e não humano, real e virtual, as mutações e reconstruções dos corpos humanos, as transformações do político.

O ambiente do cinema, que buscamos descrever sucintamente no início deste artigo, nascido junto com a cultura visual médica e a imaginação que a acompanhou, constitui, provavelmente, seu mais fértil campo de expressão.

O que parece ter mudado é a forma da pergunta: não se trata mais de inquirir qual é a sua especificidade nesta tipologia produzida pelo evento-crime da literatura policial moderna, mas sim, a que espécie você pertence neste novo real?

Talvez tenhamos saído de uma pergunta epistemológica moderna para um atual retorno a um problema radicalmente ontológico: até que ponto permanecemos humanos?

Notas de rodapé:
1
Le Bréton, David. Adieu au corps. Paris: Métaillée, 1999. e Anthropologie du corps et modernité. Paris: PUF, 3ème édition, 2003.
2 Expressão feliz cunhada por Francisco Ortega in O Corpo Incerto, 2007.
3 Na verdade temos duas datas para o nascimento dos raios X; 1898 quando Roetgen os descobre, quase que por acaso, e 1913, quando passam a se utilizar da radioatividade, descoberta em 1898 por Becquerel.
4 LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité. Paris: PUF, 2003. p.211.
5 Referência aos trabalhos de Michel Foucault.
6 CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa, R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
7 Algumas gerações, aliás, foram marcadas pelos namoros iniciados ou vividos “no escurinho do cinema”.
8 Nesta perspectiva voyeurista dois filmes curiosos merecem citação uma vez que seu tema comum é uma viagem espetacular pelo interior do corpo humano: Viagem fantástica (Fantastic Voyage) de Richard Lester, 1966 e Viagem Insólita (Innerspace) de Joe Dante, 1987.
9 Esta avaliação da ficção-científica como menor vigorou, com exceções, até os anos 60, na periodização consensual dos estudiosos do tema. Quanto à relação cinema e arte, inscreveu-se numa polêmica que cobriu parte do século XX: a técnica será o caminho de libertação do homem ou de sua escravização?
10 A este respeito recomendamos a trilogia Temps et technique de Bernard Stiegler, sobretudo o terceiro volume, Le temps du cinema et la question du mal-être. Paris: Galilée, 2001.
11 Sem dúvida a ficção-científica tem sido a narrativa cinematográfica que mais explora os chamados “efeitos especiais”, investimentos técnicos e estéticos.
12 Comentado por Luiz Alberto Oliveira em “Biontes, bióides e Borges”, In: O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
13 Apud, LE BRÉTON, David. Adeus ao corpo. In: O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras.
14 A este respeito, WERTHEIM, Margaret. A história do espaço de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
15 Apud Le Bréton, opus cit, p.127.
16 J.D.Ballard, apud Le Bréton, p.135.




Bibliografia:

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TUCHERMAN, Ieda. Breve história do corpo e de seus monstros. 2. ed. Lisboa: Editora Vega, 2004.






CORPOS CONTEMPORÂNEOS





Vera Pollo





Antropólogos e historiadores, entre outros pesquisadores, são unânimes em afirmar que a queda das grandes transcendências políticas e religiosas na segunda metade do século XX seria a principal responsável pelo fato de que só nos resta o corpo para dar algum sentido à existência. No lugar dos ideais políticos e religiosos encontram-se atualmente os imperativos do gozo do aqui e agora e o imenso investimento nos bens de consumo, em particular no corpo como “o mais belo objeto de consumo”, segundo a bem conhecida expressão do filósofo Jean Baudrillard (1929-2007) em seu livro “A sociedade de consumo” (1), publicado pela primeira vez em 1989.



Pode-se dizer que o corpo se tornou o centro da identidade contemporânea. Fenômenos de corpo se multiplicam. Lembremos a pluralidade dos sintomas e dos fenômenos nos quais a subjetividade se deixa ver principalmente através do corpo: os distúrbios alimentares, a anorexia e a bulimia, em primeiro lugar, mas também as tatuagens, os piercings, a body art, os implantes, e ainda, o transexualismo, as cirurgias estéticas e tudo que ocorre como efeito do que merece de fato ser chamado de “a ditadura ou o reino da imagem”.



A psicanálise não pensa diferentemente e, desde Freud, afirmamos sem cessar que “o eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal, não simplesmente uma entidade de superfície, mas, ele próprio, a projeção de uma superfície” (1923/1976, p.40). Isso equivale a dizer que a imagem do corpo é prevalente em tudo que o homem elege e/ou produz como objetos para o desejo. No entanto, em nossos dias, a ciência permite ao sujeito refazer seu corpo, de modo que ele se sente “autorizado a escolher onde outrora o corpo lhe impunha seu limite.” (Castanet, 2010, p.70)



Em consequência disso, torna-se defensável a tese de que nossa época coloca em evidência uma disjunção entre as palavras e os corpos, consecutiva à inconsistência do Outro, pois as palavras já não buscam responder aos excessos do gozo do corpo. Entregue a manifestações anômicas (do grego ‘a’, negação, e ‘nomos’, lei), o corpo se transforma em objeto de um gozo metonímico, compulsivo e, eventualmente, desenfreado. Podemos indagar, por exemplo, qual seria o correspondente subjetivo da crescente obesidade dos corpos nos países ricos: inchaço narcísico ou negação do corpo?



O empuxo à exibição do corpo na contemporaneidade é muitas vezes o testemunho de um gozo cujo sofrimento não deve aparecer. É o caso, por exemplo, dos desfiles das top models que sofrem de anorexia, sentem dores, mas devem se dar ares de satisfação. É também o caso dos que se dedicam aos chamados “esportes radicais” ou dos atletas de alta performance, cujos corpos são tratados cientificamente. “Essa colocação em cena dos corpos e do gozo juntos visa criar uma norma que repousa sobre as formas de representação do excesso de gozo.” (Castanet 2010, p.71)



Entre as modificações corporais mais correntes e mais aceitas, as tatuagens e os piercings denunciam que o corpo deve ser dominado, porque ele é tanto um parceiro quanto um inimigo que é necessário imobilizar. A toxina botúlica encobre temporariamente as rugas, ao paralisar o músculo. As tatuagens se fazem mediante um processo de abertura e fechamento da pele, por isso representam um ato de posse do corpo e uma referência identitária (Lacan, 1964). Elas convocam o olhar a partir de um ‘a mais’ e, nisto, não diferem dos piercings. Todas essas formas de manipulação voluntária do corpo sugerem uma carência da dimensão subjetiva.



Se, como propõe Lacan em 1970 (2003, p.406), “o corpo, a ser levado a sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequência de significantes”, algo sucede aos sujeitos contemporâneos cujos corpos parecem não ter sido marcados em tempo hábil durante os anos da infância, lhes dificultando, quando não impossibilitando, a narração, com o corpo e por meio dele, de uma história de vida e de família. Algo que os leva a inscrever sobre a pele uma marca substituta.



É interessante verificarmos o quanto se sobrepõem as observações sobre o corpo de um psicanalista francês, Didier Castanet, que pratica a psicanálise em Toulouse, e uma psicanalista que, embora de origem italiana, exerce a clínica psicanalítica em Nova York, como Paola Mieli, autora do livro Sobre as manipulações irreversíveis do corpo e outros textos psicanalíticos (2).



Paola chama a atenção para o fato de que, embora as manipulações voluntárias irreversíveis sejam realizadas por razões geralmente designadas como “estéticas”, para o sujeito que a elas se submete se trata sempre de “corrigir” um traço físico particular que é vivido sob o signo do “em excesso”, em demasia ou, ao contrário, sob o signo da falta que consiste imaginariamente no “excessivamente pouco”. Na clínica psicanalítica, está em jogo uma parte do corpo que “insiste no sentido de embaraçar [...] um embaraço que é ao mesmo tempo incômodo e impedimento dos movimentos; um estorvo, fonte de mal-estar e de perturbação” (Mieli, 2002, p.15).




A busca voluntária pela manipulação não significa que o sujeito esteja ciente das razões que o movem, as quais podem ser totalmente inconscientes. No caso dos fenômenos bulímicos e anoréxicos, as transformações corporais podem se tornar irreversíveis, quando não letais. O curioso é que, independente das consequências, mais ou menos graves, “a clínica mostra que a intervenção voluntária sobre o real do corpo se impõe, com frequência, como uma “necessidade”. Compete-nos então sustentarmos, em cada caso, a interrogação sobre as razões estruturais daquilo que se apresenta como “necessário” no nível subjetivo (Mieli, idem).



Em 2001, foi organizado no Rio de Janeiro, em Brasília e em São Paulo, um Colóquio internacional intitulado “O homem-máquina”, com a participação de eminentes pesquisadores e conferencistas de diversos países e de diferentes formações: filósofos, antropólogos, médicos geneticistas ou de outras especialidades, professores de história da arte e de música, e ainda outros. Dois anos depois foi lançado o livro do Colóquio com o seguinte título: O homem-máquina, a ciência manipula o corpo (3). Confrontados aos enormes progressos da informática e da ciência médica, em particular das pesquisas em genética, os pesquisadores começam a falar na possibilidade de um “adeus ao corpo” em seu sentido estritamente biológico, o que representaria, de acordo com seus próprios termos, a realização, embora postergada, do voto de Descartes.



Enquanto os seres humanos aguardam que se tornem cotidianas as práticas de transplante de cérebro e a escolha de embriões segundo os padrões ideais de perfeição física e psíquica de uma determinada época e cultura, a busca por modificações corporais, inteira ou parcialmente voluntárias, se torna dia a dia mais frequente, porquanto também mais acessíveis. Trabalhos recentes de psicanalistas, filósofos e sociólogos enfatizam a cumplicidade do discurso da ciência com o discurso do capitalismo, trazendo como resultado a produção incessante de gadgets (Lacan, 1969-1970), isto é, de objetos prontos para o gozo, entre os quais podemos situar os inúmeros aparelhos destinados a modificar as formas do corpo humano, assim como as substâncias químicas que visam ao mesmo fim. Em resumo, o corpo humano se transformou, ele próprio, em um gadget entre outros.



Embora a história nos ensine que práticas de tatuagem, até mesmo de escarificações, existam desde sempre em culturas milenares, não se pode negar que estão surgindo técnicas inéditas de modificação do corpo, como resultado de outra cumplicidade contemporânea. Referimo-nos, nesse caso, à cumplicidade das pesquisas médicas – genéticas e farmacológicas – não apenas com o discurso do capitalismo, através dos laboratórios multinacionais, mas também com o discurso que, sob o emblema do saber biopsicossocial, implica a produção de “corpos ideais”. A imisção discursiva, ingerência mútua e recíproca de diferentes campos de saber, faz crer aos mais ingênuos que se trata de um corpo acessível a todo cidadão, despertando-lhe midiaticamente o desejo de posse deste corpo.



Das mais diversas cirurgias ditas ‘estéticas’ e/ou ‘reparadoras’, passando também pelas cirurgias de mudança de sexo, pelas tatuagens que chegam a ocupar enormes extensões da superfície corporal, pela aplicação de piercings nos mais diferentes lugares do corpo, os seres falantes estão buscando uma forma corporal diferente daquela que herdou dos genitores ou, pelo menos, daquela que eles veem no espelho e que nem sempre corresponde ao que os outros veem.



O livro Corpo: identidade, memórias e subjetividades (4), resultado de um colóquio ainda mais recente, ressalta que o corpo está entre os paradoxos do mundo contemporâneo, em decorrência da mudança nas percepções sobre os sentidos, a beleza, a sexualidade, o envelhecimento, a doença, a vida e a morte. Nele se pode ler que a contínua transformação e fragmentação presentes em todas as dimensões da vida contemporânea problematizam a ideia de um corpo puro e fazem dele um lugar de resistência e afirmação/construção de identidade (2009, p.9). Tal assertiva evidencia que a pesquisa sobre a relação corpo/identidade constitui o que poderia ser chamado de área de interseção entre os campos da teoria social, da teoria psicanalítica, da antropologia e da história.



O corpo já não é visto como o mero objeto passivo dos processos de aculturamento e civilização e das relações de poder, mas como parte integrante, inclusive agente, do projeto de modernidade. Impõe-se a necessidade de desfazer os pares tradicionais – natureza/cultura, mudança/imutabilidade, real/virtual -, em busca de um entendimento conjunto dessas categorias. Villaça (2009, p.35) ressalta então a diferença entre o projeto moderno, em que o corpo era uma exterioridade a ser controlada, e o contemporâneo no qual o corpo surge como carne e imagem, matéria e espírito simultaneamente.



Na direção exatamente oposta à de alguns participantes do Colóquio de 2001, que apostavam na realização do voto de Descartes, Villaça afirma que “o corpo parece insistir com seu próprio discurso contra os filósofos da linhagem platônica/ cartesiana e insiste contra todos os discursos de normatização provenientes do campo médico, jurídico, artístico, etc.” (p.37) Subscrevendo a ideia de Pierre Bourdieu, a autora emprega a expressão “capital cultural” para designar o conjunto dos sinais que constituem a ‘forma do corpo’ – altura, peso, postura, andar, conduta, tom de voz, estilo de falar – e que revelam as origens e a trajetória de vida de uma pessoa.



Como um homem de seu tempo, o psicanalista – cujo discurso, vale lembrar, nasce junto com o da ciência moderna –, também deverá encontrar respostas às questões relativas ao desejo de mudanças no corpo, sua forma ou seu tamanho, questões que se fazem cada vez mais presentes em sua clínica e, como mencionamos acima, têm eventualmente conduzido os pesquisadores a respostas exatamente contrárias: ou o corpo realiza o voto de Descartes ou insiste contra ele.



Por fim, queremos apenas salientar que a psicanálise trabalha com a distinção entre o corpo, a carne e o organismo, por ter verificado, desde seus primórdios, que “... distúrbios graves na distribuição da libido, tal como a melancolia, são temporariamente interrompidos por uma moléstia orgânica intercorrente e, na verdade, mesmo uma condição plenamente desenvolvida de demência precoce é capaz de remissão temporária nessas mesmas circunstâncias.” (Freud, 1920/1976, p.50)



Embora se perceba o efeito de esvaziamento do gozo por meio da apreensão do corpo pelo encadeamento dos significantes, também se observa que, nos seres falantes, há evidentemente um gozo fálico, que envolve o corpo e que vem em substituição ao gozo do vivente – gozo da planta, por exemplo, que é opaco e sem limites, portanto não civilizado. O gozo fálico envolve o corpo, mas em nada aproxima os seres sexuados, ele antes os afasta. O desejo, enquanto desejo do Outro, vem como uma segunda barreira ao gozo, favorecendo a homeostase do princípio de prazer. Ou há prazer ou há gozo, a angústia é o elemento que os separa. E a angústia nada mais é do que “o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo.” (Lacan, 1974/2002, p.65) (5)



Se a clínica psicanalítica nos ensina que falar em “corpo simbólico” não é fazer metáfora, uma vez que, no nível subjetivo, ter um corpo equivale a poder falar dele, até os dias de hoje, nada, nenhuma teoria esclarece por completo “o mistério do corpo falante” (Lacan, 1973).

Notas:
1
A primeira edição em língua portuguesa data de 2008.
2 Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, 2002.
3 Organizado por Adauto Novaes e publicado pela Editora Companhia das Letras, 2003.
4 Organizado por Velloso, Rouchou & Oliveira, pesquisadoras da Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, realizado em 2008.
5 Publicação da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre).